Como ouvir sem machucar: depoimento especial alcança seu objetivo de proteger vítimas

Por Luiz Del Moura

SC se destaca nacionalmente na implementação desse tipo de escuta

A escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência é um dos momentos mais delicados do processo judicial. Para garantir que esta fase ocorra com o máximo de cuidado e respeito, foi criada a Lei 13.431/2017, que estabelece diretrizes para a escuta protegida e inclui a escuta especializada e o depoimento especial. A aplicação dessa lei em Santa Catarina, a partir de abril de 2018, com avanços concretos na estruturação do depoimento especial, tornou o Estado referência nacional na implementação.

O juiz Klauss Corrêa de Souza, da Vara da Infância e Juventude da comarca de Criciúma, e o psicólogo Ricardo Luiz de Bom Maria, da Coordenadoria Estadual da Infância e Juventude (CEIJ), do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, explicam como essa prática tem sido implementada e quais os impactos para a proteção integral da infância.

O magistrado destaca que o Poder Judiciário tem papel central na aplicação da Lei da Escuta Protegida, como é conhecida. “Atuamos como guardiões dos direitos de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Cabe ao juiz zelar para que a escuta ocorra de forma protegida, garantindo que todo o procedimento siga as diretrizes da lei: desde a criação de um ambiente seguro e acolhedor até a condução da entrevista por um profissional especializado”, afirma.

Em Santa Catarina, a implementação do depoimento especial foi conduzida com planejamento e articulação institucional. A CEIJ foi designada como unidade responsável pela estruturação do procedimento nas comarcas. A implantação contou com o apoio da Academia Judicial, da Corregedoria-Geral da Justiça e de outras diretorias do Tribunal de Justiça.

“O depoimento especial foi estruturado mediante a combinação de protocolos de entrevista investigativa internacionalmente reconhecidos, ambiente acolhedor e seguro, com espaço físico e infraestrutura apropriados, que garantem a privacidade da criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência, além da capacitação contínua dos profissionais envolvidos”, explica o magistrado.

Entre os principais avanços, Klauss destaca a adoção de protocolos como PEACE, NICHD e Entrevista Cognitiva, que conferem validade científica ao procedimento. Esses protocolos são complementares e, quando aplicados corretamente, tornam a escuta mais segura, eficaz e respeitosa para a criança ou adolescente. Além disso, o TJSC, em parceria com a Academia Judicial, oferece cursos de capacitação com módulos teóricos e práticos para magistrados, psicólogos, assistentes sociais e oficiais da infância e juventude.

Outro ponto de destaque é a articulação interinstitucional. “A parceria entre Tribunal de Justiça, Ministério Público e Polícia Civil fortalece a aplicação desta lei e representa um avanço significativo na proteção das crianças e adolescentes, garantindo que a circulação da vítima ou testemunha pela rede de proteção e responsabilização seja a mais rápida e cuidadosa possível”, afirma.

Para o magistrado, a escuta protegida é um dos pilares da proteção integral. “Ela rompe com a lógica tradicional de um sistema de justiça que, por muito tempo, não esteve preparado para ouvir crianças e adolescentes de forma adequada. Ao prever um ambiente seguro, acolhedor e adaptado à idade e ao desenvolvimento da vítima, e ao empregar técnicas específicas de abordagem, essa prática reduz significativamente o chamado dano secundário, o sofrimento adicional causado pela exposição reiterada e inadequada aos mesmos fatos traumáticos durante o processo judicial”.

Infraestrutura e formação continuada
O juiz também destaca o investimento em infraestrutura e formação continuada. “Cada comarca reserva um espaço exclusivo para a realização do depoimento especial, com condições de segurança, privacidade, conforto e isolamento acústico. Esses ambientes são projetados para não reproduzirem a formalidade das salas de audiência tradicionais, sendo acolhedores, humanizados e tecnologicamente equipados”.

Apesar dos avanços, Klauss reconhece que ainda há desafios. “Um dos principais é o fortalecimento da articulação entre os diversos órgãos que compõem a rede de proteção, a fim de que o depoimento especial não seja tratado como um ato isolado, mas como parte integrante de um fluxo contínuo e articulado de atendimento. Isso também implica garantir que a criança ou o adolescente tenha acesso a acompanhamento psicossocial qualificado antes e após sua oitiva”.

Por fim, ele reforça que o depoimento especial evita a revitimização ao permitir que a criança ou adolescente seja ouvida uma única vez, por um profissional capacitado, em ambiente acolhedor e adequado ao seu desenvolvimento. “Essa escuta é conduzida com técnicas específicas que respeitam os limites emocionais da vítima. Dessa forma, reduz-se o sofrimento psicológico, protegendo a dignidade e os direitos da criança e do adolescente”.

A escuta como cuidado: a perspectiva psicológica
Do ponto de vista psicológico, a escuta protegida é uma prática que respeita a criança como sujeito em desenvolvimento. Ricardo Luiz de Bom Maria, psicólogo da CEIJ, explica que o objetivo é propiciar um espaço de escuta mais adaptado às condições da criança, com técnicas e procedimentos que favoreçam o bem-estar e respeitem a condição da criança enquanto um sujeito em desenvolvimento, evitando práticas que produzem sofrimento e dano psicológico.

Ele diferencia o depoimento especial de uma entrevista comum ao destacar que esse formato considera o ritmo, o tempo e a condição emocional da criança. “Toda a estrutura do depoimento especial, com as suas etapas e técnicas, busca acolher adequadamente a criança e o adolescente, como igualmente facilitar o momento da oitiva quanto ao processo de lembrar e relatar uma determinada situação negativa, geralmente associada a uma violência sofrida”.

O cuidado do profissional é essencial. “O profissional deve se manter fiel à metodologia da entrevista, com sensibilidade e comprometimento, com intuito de realizar uma escuta ativa apropriada e possibilitar o livre relato por parte do (a) depoente, sem sugestionamento, interferências e posturas inadequadas que possam comprometer a oitiva e prejudicar a criança”.

Evitar o sofrimento: o cuidado que protege e não traumatiza
Ricardo propõe uma reflexão importante sobre como evitar que o depoimento traumatize a criança. “O essencial é que a entrevista não agrave o trauma já existente, nem exponha a criança a um novo sofrimento. Quando isso ocorre, caracteriza-se o que chamamos de violência secundária, que são situações em que o próprio procedimento de escuta, em vez de proteger, acaba intensificando o sofrimento da vítima”.

Ele reforça que toda a metodologia do depoimento especial e o treinamento dos profissionais têm como objetivo justamente evitar que a oitiva prejudique a criança. “Ao contrário, deve ser um espaço de escuta protetivo, adaptado às necessidades da criança e capaz de ouvi-la com atenção, cuidado e eficiência”.

Sobre o preparo emocional dos profissionais, Ricardo é enfático: “Como em qualquer outro trabalho que lide diretamente com o sofrimento humano, o profissional que atua como entrevistador necessita estar bem-organizado emocionalmente e na plenitude das suas capacidades psíquicas. Ele não deve misturar o sofrimento do outro com as suas questões pessoais, sob o risco de se desorganizar gradativamente em termos psicológicos”.

Ricardo destaca que pontos positivos com o depoimento especial são perceptíveis. “Já foi possível perceber, inúmeras vezes, a criança relatar fatos muito tristes relativos à violência sofrida, e conseguir sair da entrevista relativamente bem, sem um sofrimento mais palpável, e sem estar desorganizada emocionalmente. Isso ocorre porque o procedimento de oitiva objetiva justamente essa finalidade: possibilitar o acesso às memórias negativas, mas preservando a pessoa e possibilitando que ela saia da entrevista em boas condições emocionais”.

NCI/TJSC – Taina Borges

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